Chiado atirou decadência pela colina abaixo

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João Seixas diz que apesar da gravidade do incêndio, o Chiado teve músculo para se manter vivo PÚBLICO (arquivo)

Quem desce a Rua do Carmo, em Lisboa, repleta de lojas para a classe média, não pode deixar de bater com os olhos nos reclamos fluorescentes à entrada do Rossio. Na esquina de uma das praças mais nobres da cidade há cuecas de homem a dois euros e soutiãs a menos de quatro, num local até há pouco tempo ocupado por uma tabacaria. Tal como lá em cima, no Largo do Chiado, as etiquetas dos preços são o que mais prende a atenção dos transeuntes. E no entanto dificilmente podia ser mais flagrante o contraste das vitrinas da casa Hermès, primorosamente forradas a flores, com as montras do supermercado de lingerie do Rossio.

Cá em cima o vestido pérola de costas em V, rematado por uma barra azul, suscita exclamações de espanto. Não é pelo corte, nem pelo tecido. É que custa quase três mil euros. Na Cartier, uns metros abaixo, há colares a 39 mil. Cá em cima, no Chiado, faz hoje 20 anos que um comércio em parte decadente serviu de pasto às chamas, e é também por isso que os preços subiram em flecha. Como os escombros que atulharam as ruas depois do incêndio, também a maioria dos sinais de decadência do Chiado foram atirados colina abaixo.

Hoje, perante a crescente dinâmica do Chiado, há quem lamente que as labaredas não tenham resgatado também a Baixa ao seu torpor. O homem que fez renascer o Chiado das cinzas, Siza Vieira, lamenta que a revitalização do centro da cidade continue por acontecer, apesar de todas as promessas: "A recuperação que fiz foi apenas de 22 edifícios, e não do centro histórico. Foi muito pouco. A Baixa devia estar cheia de vida, mas à noite morre".

O arquitecto sabe como o seu renascimento faz falta ao Chiado, e acredita que um dia ele sucederá, como já aconteceu em Barcelona e noutras cidades europeias. Sabe também que nem tudo correu bem lá em cima, por muito que o luxo encha o olho a quem passa. "Os preços do Chiado são um entrave tremendo", admite. "As rendas são caríssimas. Não se encontrou um meio jurídico de as controlar". Resultado? "Algumas casas são habitadas permanentemente. Outras pertencem a pessoas de fora de Lisboa", que as deixam vazias grande parte do tempo. O administrador de um banco pagou um milhão de euros por um apartamento num último andar na Rua Garrett. É dos poucos habitantes que não se queixam da falta de estacionamento, porque o edifício tem parque. Mas se quiser um produto de primeira necessidade, terá que descer à Baixa ou subir a Santa Catarina.

Neste Chiado renovado não há espaço para mercearias nem para supermercados. Almoça-se nos restaurantes. Jantar nem tanto, que a vida nocturna ainda não passou por aqui. Os horários do comércio são outro problema, aponta Siza: "As lojas fecham quando as pessoas chegam ao Chiado", depois de saírem dos empregos. Já foi pior: hoje é possível encontrar estabelecimentos abertos até às 20h00. A partir dessa hora começam a chegar os sem-abrigo e o local torna-se corredor de passagem, porque todos os caminhos vão dar ao Bairro Alto. Ou melhor, quase todos: um dos bares mais exclusivos de Lisboa, o Silk, nasceu há pouco tempo na fronteira entre o Chiado e o Bairro Alto, no último andar do centro comercial Espaço Chiado.

Com menos glamour, o centro comercial Armazéns do Chiado foi, juntamente com a estação de metro, um dos grandes contributos para a revitalização depois do incêndio. Siza Vieira já se conformou, apesar de não terem sido estes os seus planos: "O edifício dos antigos armazéns era para ser todo ele um hotel. Espantou-me na altura não haver uma empresa portuguesa que pegasse na ideia".

FNAC é pólo de atracção

No centro comercial, pegado ao qual foi construída uma pequena unidade hoteleira, é sobretudo a FNAC que atrai a clientela. "É um dos factores de animação do Chiado", reconhece o arquitecto, secundado pelo professor universitário João Seixas. O investigador fala dos "conteúdos cosmopolitas" que esta multinacional da cultura trouxe para a zona e da operação de reabilitação encabeçada por Siza, "coordenada pelos poderes públicos", para chegar à conclusão de que o renascimento do Chiado é um caso de sucesso.

A identidade do local contribuiu para isso: "Apesar da gravidade do incêndio, o Chiado teve músculo para se manter vivo".

Mas é este o Chiado que queremos? João Seixas admite riscos: "Um dos maiores é o da turistificação e da banalização". Os centros históricos demasiado virados para agradar ao turista acabam por parecer-se todos muito uns com os outros. É preciso que os governantes da cidade apoiem o comércio tradicional e de proximidade, aquele que pode fazer a diferença. "A prioridade do Chiado deve ser o usufruto dos lisboetas", frisa.

Os turistas virão por acréscimo. Há quem veja neste novo Chiado um claro caso de gentrificação, com os seus velhos habitantes a serem substituídos por uma nova camada abastada de residentes e lojistas. "Num espaço com estas características é inevitável", observa João Seixas. "Não vejo mal nenhum nisso".

Vinte anos depois das chamas, Siza vai agora completar a reconstrução, ligando um pátio das traseiras da Rua do Carmo ao Convento do Carmo. O elevador do metropolitano para a Rua Ivens também será uma realidade, assegura o arquitecto. "A renovação de toda a zona em seu redor vai conferir ao Chiado o seu papel de zona central, nuclear da cidade".

João Seixas também acredita no futuro: "A Baixa é uma Bela Adormecida à espera de que um beijo a desperte".

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